sábado, 17 de abril de 2010

quinta-feira, 15 de abril de 2010

O Senhor Zé

Cheguei a voltar a casa até às quatro da manhã, ou, quando o arrefecimento da noite o permitia (isto é, quando ma dava folga, naquelas noites de verão...) nem chegava a deitar-me. Quando alguém dava pelo meu regresso perguntavam-me de onde vinha. Invariavelmente respondia que estive a ouvir o senhor Zé. Não indicava o local, como se fosse natural todas as mentes entenderem que o lugar são as conversas que saiam da boca do senhor Zé. Muitas chagavam mesmo a percorrer um caminho atribulado, tinham que patinar algures na laringe enlameada pela cerveja de garrafa e demoravam a sair.
Quem ainda tinha forças para me desafiar, pediam para justificar a demora devida a um motivo tão pouco legítimo. Sentiam-se vencidas por argumentos meus (que eram só redundâncias da frase 'estive a ouvir o senhor Zé a contar histórias') sentiam-se vencidas e disparavam coisas sem sentido. Por vezes até mostrava que as histórias que ouvia eram importantes. O senhor Zé falava-me dos seus tempos todos, dos quais nem suponha que metade fossem dele; contava-me das vezes que tinha sido fodido e de algumas em que fodera, num manifesto mais ou menos literal do que fora a sua vida (porque para a frente eram só especulações). Era importante ouvir o senhor Zé, vou faltar às aulas da manhã se for preciso porque mais ninguém vai estar ali senão eu, e é vital ouvi-lo. Do outro lado começavam a impacientar-se, a sentirem um súbito chamamento para a razão, pelo menos para a razão deles, a razãozinha, que é aquela se sentimos quando temos razão. Então diziam de que serve ouvir agora o senhor Zé se não for às aulas. Depois ia ter uma vida miserável motivada pela fraca instrução oficial e como tal não ia poder ter a independência mental para me serem úteis, em última análise, os ensinamentos do senhor Zé. Que mais tarde podia ouvir outros velhos e bêbados, aos montões, quando tivesse a vida estabilzada. Mas eu calava-os. Dizia que aquele senhor Zé é que tem que ser ouvido. Que não ia ouvir outro senhor Zé, porque senão quem ouvia este? E que o outro senhor Zé não era este senhor Zé, e que por mais genuino, não passava de uma imitação de nylon deste senhor Zé, e quem quer uma imitação de nylon quando tem agora - atentem no agora - o verdadeiro senhor Zé? E deitava-me, mas não dormia, e ia às aulas da manhã.